quarta-feira, 31 de março de 2010

Encontro com o Passado


OUTRO DIA ENTREI EM meu antigo quarto a fim de preencher um imenso vazio. Ele parece um depósito de lembranças adormecidas que se misturam entre cadernos, imagens e demais objetos até então temporariamente perdidos e esquecidos. A poeira, como um agente do tempo, coloca rugas e enferma meus objetos do passado me avisando que um dia tudo aquilo não me fará mais sentido. E se eu esquecesse tudo o que vivi? Um homem viveria o futuro sem o passado? Eu vi cartas e desenhos. Contos e problemas. Coleções absurdas e lembranças de alguns momentos. Um papel dobrado com anotações e uma lista sem sentido. Nomes que não conheço e comerciais obsoletos. Acessórios de um tempo diferente e obsessões hoje sem importância. Encontro escritos datados e planos extraordinários de coisas que nunca cheguei a concluir. Vestes sem uso. Um modelo do que eu deveria me tornar.

EM MEIO A TODO ESTE depósito de lembranças eu vasculho e seleciono o que ainda faz sentido e descarto estratagemas que não mais levarei em diante. E mergulhado nesta piscina melancólica eu traduzo obras que há tempos ninguém lia. Sou eu lendo para mim mesmo um livro que só hoje consigo entender. Meu passado me mostra o caminho a seguir e não me faz esquecer como devo me portar. E por detrás de um pano eu vejo algo em movimento. Foco melhor e reconheço um espelho com o meu reflexo. De tanto vasculhar o meu passado reconheço que o que eu estava tentando encontrar era a mim mesmo. E no plano inverso, no lado oposto a este tempo, um ser ingênuo faz projeções confusas buscando descobrir o que acontecerá consigo quando avançar anos no relógio. Seu quarto, no entanto, ainda não tem poeira alguma.