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domingo, 3 de julho de 2011

Complexa simplicidade


LEMBRO QUE UMA vez mostrei a alguém algo que havia escrito em um de meus cadernos velhos. Poemas, contos ou fragmentos de um livro que se perdeu em sua própria história. O texto estava carregado, obscuro e cheio de elementos a serem decifrados e que davam múltiplas interpretações. Comentei que havia muitos outros como aquele, mas de uma simplicidade que lembrava os primeiros estímulos à escrita: as paixões. E meu leitor respondeu: “mas estes são os melhores”.

É VERDADE QUE os primeiros escritos de jovens com corações em chamas são intensos, simples e diretos. Desabafos para ninguém. Versos tão simples que chegam a ser íntimos, mas de uma sinceridade tamanha. E realmente é isto o que vale a pena. À medida que vamos evoluindo passamos e esconder nossas palavras em pensamentos disfarçados e frases sem sentido, usando termos difíceis a fim de parecer que somos mais um pouco sábios. Estamos na verdade buscando alguém que nos compreenda, mas preparamos um ardil tão difícil que nossa sina é terminar do mesmo modo de como começamos.

HÁ ALGUNS DIAS percebi que consegui escrever algo que me lembrou estes momentos, contendo rimas básicas e tudo. No entanto, não quis apagar como fiz com aos outros:

Ainda que tudo aquilo fosse um sonho bom; Minha lembrança não me deixaria mentir; Assim posso guardar tudo num lugar mágico; Não havendo perigo de nada se extinguir; De uma coisa eu sei, jamais vou esquecer; A intensidade marca mais que o tempo de acontecer

domingo, 8 de novembro de 2009

A Volta ao Mundo...

SOMENTE APÓS TER LIDO mais da metade d'A Volta Ao Mundo Em 80 Dias eu fui me perguntar se o protagonista do romance, Phileas Fogg, realmente conseguiria cumprir sua aposta - que é resumida através do título desta obra de Julio Verne. É que o livro se torna extrememente mais interessante quando se caminha para o fim, sendo impossível deixar os capítulos posteriores para o dia seguinte (é como aqueles filmes interessantes que torcemos para não acabar logo). A narrativa simples e direta impressiona pela precisão com que o autor montou a sua história e pelos inúmeros impecílios que colocou no meio do trajeto a fim de retardar o avanço de Fogg até o seu destino sem que para isso precisasse recorrer a elementos fantásticos e irreais: Verne parecia conhecer verdadeiramente o caminho percorrido pelo seu personagem ao redor do mundo, adicionando elementos naturais e culturais únicos para cada país que ele nos levava a visitar.

FREQUENTADOR CONSTANTE entre as listas de maiores clássicos da literatura, A Volta Ao Mundo Em 80 Dias é uma leitura obrigatória para aqueles que simplesmente gostam de ler sem compromisso, uma vez que é uma experiência muito saborosa e gratificante ao chegar ao fim deste título.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O Grande Gatsby


NÃO ME SURPREENDI nem tampouco me encantei pelo livro de F. Scott Fitzgerald ao ler O Grande Gatsby, sua obra prima. Na verdade este é o segundo grande clássico da literatura norte-americana que me desaponta – o outro foi O Sol Também se Levanta, de Ernest Hemingway. Não sei se é devido ao fato de que eu prefiro as obras do velho mundo, mas confesso que esperava muito mais deste que conquistou o segundo lugar na lista dos Cem Melhores Romances em Língua Inglesa do Século XX, superado apenas pelo Ulysses de James Joyce.

A HISTÓRIA DE ASCENSÃO de Jay Gatsby, em meio a um triângulo amoroso, é contada por um personagem que não participa muito dos acontecimentos, Nick Carraway, que acaba por se tornar o melhor amigo deste notável sujeito. A impressão que tive foi de que Gatsby foi trazido na marra por Carraway à posição de protagonista, uma vez que sua personalidade morta e sem muitas características foi incapaz de despontar neste papel. Nick não tem um grande amor, um grande emprego, uma grande casa, uma grande rede de amigos, nem uma história para contar: ele é o completo oposto de Gatsby, e talvez se a obra tivesse outro título poderia bem se chamar O Pequeno Carraway.

O ROMANCE É REALMENTE bem conduzido pelas mãos do autor e tem a sua melhor fase narrativa no último capítulo, onde nos deparamos com um personagem entristecido e abalado com um fato trágico, trazendo à tona a sua vida sem sentido – quem sabe um reflexo das confusas e loucas primeiras décadas do século XX norte-americano:

“Este é o meu Meio-Oeste – não trigo ou as pradarias ou as cidades suecas perdidas, mas os trens vibrantes de volta para casa da minha juventude e os lampiões de rua e os sinos de trenó na escuridão gelada e as sombras das grinaldas de azevinho lançadas sobre a neve através das janelas iluminadas. Sou um pouco solene com o sentimento daqueles longos invernos, um tanto complacente por ter crescido numa casa dos Carraway numa cidade em que as casas ainda são chamadas ao longo das décadas pelo nome de uma família”.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Lírio do Vale


INICIEI A LEITURA DE O Lírio do Vale, de Balzac, no mesmo dia em que terminei O Vermelho e O Negro, de Stendhal, sem saber da grande semelhança entre as duas obras. Ambas foram escritas na mesma década (1836 e 1830, respectivamente) e país (França), trazendo o mesmo tema no contexto geral do romance: o envolvimento entre um jovem inteligente e inocente rapaz com uma bela senhora mais velha [!] (mãe de dois filhos, casada com um grande senhor [!!]); e com outra igualmente bonita e distinta dama solteira [!!!] (munida de uma paixão mais fervorosa que a primeira [!!!!]), que acaba por provocar um trágico final ao triângulo amoroso [!!!!!].

O LÍRIO DO VALE faz parte de A Comédia Humana, título geral que dá unidade à obra máxima de Honoré de Balzac, composta por 89 romances, novelas e contos. Félix Vandenesse, um adolescente de aparência infantil movido por uma paixão repentina num festejo popular, rouba o beijo de uma senhora que mais tarde ele descobriria se tratar da respeitável condessa de Clochegourde, mulher do sr. de Mortsauf e mãe de duas crianças. Uma história de amor se inicia entre eles quando o jovem se torna amigo íntimo da família e passa a frequentar constantemente o castelo daquela que ele passa a chamar de Henriette. O trabalho o leva à capital francesa e lá Félix conhece a sensual Lady Arabelle Dudley, que se transforma num obstáculo para a continuação do amor platônico entre ele e a sra. de Mortsauf.

O LIVRO É ESCRITO EM forma de uma carta de Félix à condessa Natalie de Manerville e não é subdividido em capítulos. Esta poderosa narrativa de Balzac descreve com detalhes o cenário campestre/rural aonde a trama de desenvolve e ao contrário de O Vermelho e O Negro, este sim, é rico em sentimentalismo e grandiloquência.

Trecho: “O homem é composto de matéria e espírito, nele a animalidade termina, nele o anjo começa. Donde essa luta que todos nós sentimos entre um destino futuro que pressentimos e as lembranças de nossos instintos anteriores dos quais não estamos totalmente desligados; um amor carnal e um amor divino. Um homem junta-os num só, outro se abstém de ambos, este resolve o sexo inteiro para nele buscar a satisfação de seus apetites anteriores, aquele o idealiza numa só mulher na qual se resume o universo, uns pairam indecisos entre as volúpias da matéria e as do espírito, outros espiritualizam a carne pedindo-lhe o que ela não conseguiria dar. Se, pensando nesses traços gerais do amor, você levar em conta repulsas e afinidades que resultam da diversidade das organizações, e que rompem os pactos firmados entre os que não enfrentam provas; se a isso você acrescentar os erros causados pelas esperanças das pessoas que vivem mais especialmente do espírito, do coração ou da ação, que pensam, sentem ou agem, e cujas vocações são contrariadas, desconhecidas numa associação em que em que se encontram duas criaturas igualmente duplas, você terá uma grande indulgência pelas desgraças com que a sociedade se mostra impiedosa”.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O Vermelho e O Negro


TINHA O VERMELHO E O Negro em casa desde sempre guardado na coleção de livros de minha mãe, mas nunca foi despertado em mim nenhum interesse em lê-lo até descobrir que ele aparecia em algumas das várias listas que encontrei de maiores clássicos da literatura. Ao pesquisar o autor, Stendhal, logo me veio à lembrança que eu já havia lido uma outra obra sua: uma biografia de Mozart que vinha impressa em forma de revista junto de um cd do compositor que eu comprara há alguns anos numa banca de jornais. O livro se passa no período da restauração napoleônica e retrata a França do século XIX. Embora produzida em pleno Romantismo, a obra de Stendhal se mostra isenta de sentimentalismo e grandiloquência. É ligeiramente cansativa e grande em demasia, mas é dividida em capítulos curtos que facilitam a leitura.

A seguir, apresento um curto resumo (contém Spoilers):

O ROMANCE NARRADO EM terceira pessoa e escrito em 1830 constitui uma de suas obras-pimas e conta a história do jovem Julien Sorel, latinista, cristão devoto e polido filho de camponês que passa a trabalhar por ordem do pai como preceptor das crianças do Sr. de Rênal, prefeito da bela, pequena e francesa cidade de Verrières. Em pouco tempo ele se vê atraído pela sua linda patroa, que progressivamente vai-lhe retribuindo o afeto, entrando ambos em um namoro secreto e inocente que se estende por toda a primeira parte do livro. Devido às desconfianças do prefeito, Julien parte para um seminário e deixa para trás a sua amada Sra. de Rênal a quem posteriormente volta para despedir-se antes de partir definitivamente para longe. Este seu retorno a Verrièrres no último capítulo da primeira parte marca um dos momentos mais interessantes da obra.

A SEGUNDA PARTE TRAZ um Julien mais amadurecido e diante de uma nova vida: tornara-se secretário do Marquês de La Mole, “um dos maiores senhores da França” e tentava na medida do possível se acostumar com aquela alta sociedade e com as noites nos salões. Evitava conversar com a filha do marquês, a Srta. Mathilde, que vivia cercada de admiradores e quem ele achava muito orgulhosa, mas sua frieza acabaria por despertar nela um interesse que se metamorfosearia em amor (os capítulo 9 e 10 descrevem bem esta transformação). Viveram um namoro aos tropeços com o orgulho de cada um até o dia em que ela anunciou estar grávida. A Sra. de Rênal reaparece na história no 35º capítulo escrevendo contra a sua vontade uma carta ao Sr. de La Mole aonde diz absurdos sobre Julien, provocando a ira do herói que vai a Verrières tentar sem sucesso assassiná-la. É assim que o jovem Sorel se reconcilia com a sua primeira paixão e morre condenado pelo seu crime, permanecido ainda vivo no coração das duas e do lado do povo, que encontrou naquele caso uma aventura romanesca.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Entrevista

EU TINHA UMA TAREFA muito simples. Deveria apenas visitá-lo e fazer-lhe algumas perguntas acerca de sua repentina reclusão que há anos é motivo de curiosidade para os seus leitores. Era tudo o que eu precisava fazer. Sentar-me com ele em sua rústica varanda de cadeiras de madeira, aceitar um copo de água, elogiar o seu trabalho e dirigir-lhe alguns questionamentos prontos que eu carregava em minha mala. Não precisava sequer fazer anotações, uma vez que a tecnologia nos afasta cada vez mais dos lápis e das canetas.

Fui recebido como um visitante que ele esperava ansiosamente. Apesar de não haver nada fora do lugar e os móveis aparentarem um tímido brilho, foi logo se desculpando pela bagunça enquanto um pequeno cão deitado sobre o tapete aos pés de um sofá enchia-se de moderada raiva. Solicitou que eu me sentasse eu uma das cadeiras que circuncidavam uma mesa de madeira de altura reduzida enquanto iria à cozinha buscar algo. Seu amigo baixinho lhe seguiu como se sentisse medo de me fazer companhia, mas eu não dava a mínima para o que ele pensava. Observei o armário cheio de porta retratos, mas ao me aproximar pude perceber que apenas o que havia ali eram as figuras originais do fabricante: famílias felizes montadas artificialmente, modelos animais ou crianças perfeitas. Mais acima, algumas garrafas vencidas de vinho devidamente fechadas. Os últimos raios de sol entravam por uma janela de vidros quebrados que jamais pareceu estar aberta à medida que eu iria compreendendo quanta solidão abrigada aquela casa cada vez mais abandonada. Fui perguntado se estava a observar o seu jardim enquanto ele voltava com uma garrafa de vinho à mão. “Já trabalhei muito nele”, completou. “Mas hoje não sinto mais ânimo de continuar”. Mesmo sem ter percebido a sua droga de jardim, respondi-lhe que estava fazendo um ótimo trabalho e o estimulei a continuar.

- Vamos, sente-se. Imagino que tenha algumas perguntas a me fazer. Deve estar com pressa.
- Muitos criaram expectativas acerca desta conversa. Têm muitos curiosos a fim de saber o que tem feito e por onde tem andado.
- Eu sempre escrevi e continuo escrevendo. Nunca andei em lugares por onde os interessados nesta entrevista estiveram, e portanto não sei por qual motivo insistem em dizer que me isolei. Não é verdade?
- Pensando por esse lado, faz algum sentido.
- Demorou muito para chegar até aqui? Dizem que o caminho é meio confuso.
- Sim, em certo ponto do trajeto tive que voltar cerca de 300 metros. Há muitas entradas parecidas em sua vizinhança.
- Ah, sim. Tenho bons vizinhos. Não posso reclamar. Eles ficam há quase um quilômetro de minha casa em qualquer uma das direções.
- Não posso dizer o mesmo. Moro num apartamento.
- Aquilo não é lar. Onde já se viu uma casa sem telhado e sem calçada? O seu prédio não é uma casa. É apenas um prédio.
- Me lembro que foi difícil para consegui-lo.
- É verdade que damos mais valor às coisas que nos vêm através de muito esforço, mas é preciso pensar no verdadeiro sentido das coisas. Não desperdice tanto tempo de trabalho comprando um pedaço de edifício em vez de uma casa com muros, quintal e jardim. Aonde seus filhos irão brincar? Você tem filhos, não tem?
- Um menino e uma menina.
- Deve ser um belo casal. Já sabem escrever?
- O meu garoto está chegando lá.
- Você não acha que estas nossas crianças estão cada vez mais precoces? É um fato.
- Deve ser um reflexo da velocidade com que recebemos informação.
- Acha que as crianças devem ter acesso à tecnologia desde pequenas?
- Não acho uma boa idéia.
- Você tem computadores em casa, não tem? Imagino que os seus filhos já sabem utilizá-los.
- Meu garoto gosta de jogos.
- Ah, os jogos! As crianças de hoje aprendem a atirar antes de escreverem seus sobrenomes. Não é interessante?
- São mesmo precoces.

Enquanto ele me fazia perguntas, foi aos poucos se dirigindo à varanda que já se encontrava escurecida. Foi obrigado a acender a luz externa. Quis saber acerca de meu trabalho no jornal, minha esposa e o lugar aonde moro. Perguntou ainda se eu tinha contato com meus amigos de infância e há quanto tempo não fazia uma viagem. Me deu inúmeros conselhos e me alertou do perigo da volta para casa, mas me consolou ao dizer que o caminho de volta é sempre mais rápido. Apertei-lhe a mão e entrei no carro, mas antes que ele entrasse para a sua solitária casa, me agradeceu em voz alta:
- Obrigado pela entrevista.

sábado, 18 de outubro de 2008

Aventura de Sono

NÃO CONSIGO MAIS controlar a vontade de cochilar no ônibus enquanto volto pra casa. E tudo parece exatamente simétrico, uma vez que é sempre no mesmo lugar do trajeto aonde minha rendição começa. Nosso relógio biológico funciona perfeitamente quando a nossa rotina se torna constante. Há uma semana eu mudei o horário de meu despertador, pensando que assim eu ganharia mais alguns preciosos cinco minutos de sono, mas vi que não deu certo. Ora, eu sempre acordo cinco minutos antes do alarme gritar em meu ouvido. Então espero desperto pelo momento de desligá-lo.

IMPRESSIONANTE É o tamanho da vontade que temos em permanecer na cama quando somos obrigados a acordar cedo. Já perdi uma dezena de aulas por conta dessa preguiça. Um amigo dizia que colocava seu despertador do outro lado do quarto para que se sentisse obrigado a levantar logo, a fim de não incomodar o sono dos outros. Porque quando o sono realmente é grande, um despertadorzinho já não adianta.


REZA A LENDA QUE Hipnos, o deus do sono, não conseguia adormecer em si o amor que sentia. Inocente dos olhos que o seguiam, a graça Pasitéia se banhava e adormecia. É então que Hipnos saía de seu esconderijo, mas ao menor movimento da jovem ele desaparecia entre as árvores. Nos banquetes do Olimpo não se cansava de admirá-la, mas temia confessar-lhe o amor.

DE REPENTE HERA vem a Hipnos pedir-lhe um favor: teria que fazer com que Zeus adormecesse durante a Guerra de Tróia para que os gregos a ganhassem, pois ele protegia os troianos no longo confronto. Em troca, Hipnos ganharia um trono de ouro, que seria construído por Hefestos; e o amor da mais jovem das graças, sua querida Pasitéia. Encorajado, aceitou o acordo instantaneamente.

HERA UNTOU SEU corpo com óleo, amarrou os cabelos, vestiu a túnica bordada por Atena e cubriu-se de jóias. Calçou as sandálias de ouro e envolveu-se de um véu dourado. E por último, colocou o cinturão de Afrodite, na qual pediu emprestado contando à deusa que precisava dele para reconciliar seus pais adotivos, Oceano e Tétis, que teriam discutido. Perguntada pelo marido aonde iria tão enfeitada, Hera respondeu que iria visitar seus pais, mas Zeus, encantado, proibiu-a e chamou a deusa para a cama, aonde fizeram amor. Hipnos então o adormece, o que permite a vitória dos gregos.

À NOITE, O DEUS do sono viu uma clareira e avistou Pasitéia, sua graça amada, que parecia esperá-lo desde cedo. Aproximou-se encorajado por um sorriso e beijou-lhe as mãos, sentindo-se o mais feliz dos imortais.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Constelação piegas

DAS LETRAS QUE COMPÕEM seu nome farei inconstantes personagens irreais. Vestirei cada um deles com as cores de seus pêlos, a intensidade de seu sangue, a transparência de suas lágrimas, a alvidez das suas presas, a profundidade de seus olhos e a textura da sua epiderme. Colocarei em suas bocas aquilo que sempre quis ouvir de você, mas ainda não me foi permitido. E então, gravarei a posição de uma dezena de estrelas no dia de seu aniversário a fim de reproduzir a cena e batizar a constelação nascente com o nome pelo qual você é chamada, para que eu sempre me lembre de jamais esquecê-la.

sábado, 5 de julho de 2008

Trovas de um quase casal

FIQUEI TREMENDAMENTE lisonjeado quando minha adorada amiga blogueira e conterrânea Jaquelyne A. Costa (escritora do excelente blog de poesias Jaque Sou, o Jeito é Ser!) me mostrou um pequeno conto que ela produziu inspirada em meu singelo Diálogo Trovadoresco (postado aqui em 23 de maio). Não sei expressar em palavras o quanto gostei do texto (que transcrevi logo abaixo - com autorização da autora), uma vez que sou grande admirador de seu estilo mágico de escrever.


-Quem te chamou até aqui?
-O amor, minha senhora, esta chama que trago por ti no peito!
-Tolo.
-Oh, minha amada, assim a mim não te dirijas. Suplico-te. Olhes para a lua, veja a prata que nela existe e lembra-te de nossos álacres momentos!
- Sabes que nada sinto por ti, deixe de tuas cretinices!
-...
-Não me exijas...
Ele coloca de súbito a mão em sua boca, interrompendo-a.
-Parcimônia, bela dama! Não te exijo nada além do que me emprestares teu ouvidos.
-Não repita este estúpido gesto!Ora, insolente, tapar-me a boca...
-Não o fiz por mal.
-Imagino...
Ela faz um ar de ironia e cruza os braços.
-Sabes quanto a rosa perde de tua beleza?
-Não! Apenas sei de seus espinhos e o quanto doem em minha pele, e foi isto que destes a mim durante todo este tempo, mentiroso!
-Pois eu sei. Tu, adorável donzela, és mais gloriosa que as estrelas; és mais perfumosa que as rosas e seus botões; és mais formosa que toda a natureza em sua esplêndida ternura.
-Um vento forte se aproxima. Entrarei. É noite profunda, não posso mais ficar a tomar este frio no corpo. Além do que, tu só falas mentiras para mim o tempo todo. Estou exausta, não me perturbes mais!
-Não, por favor! Oh, berilo do campo estrelado! Calhandra dos verões infantes!
-Oh, sim! Se me amas, deixar-me-á entrar para não ficar constipada. Quanto ao berilo e a calhandra vai isto dizer a quem te merece.
-Mas ainda duvidas de meu eidético sentimento? Acaso achas que eu não te protegerei de qualquer mal que de ti se aproximar? Duvidas que meu coração só reclama por teu, e tão somente, o teu amor?
-Não quis ofendê-lo, meu cínico senhor. Vais para tua casa, que eu entrarei neste santiâmem.
Ela despreza a reação dele que se indigna em não alcançar o convencimento.
-Irei se me concederes o direito de encostar os meus nos teus lábios que são puro mel.
-Atrevido! Ousado! Cretino!
-Atrevido sim, meu anjo barroco, e só o amor me faz ser assim tão insolente, e ousado, e cretino como o dizes!
-Pois não admiro-te nem um pouco. E pare de me chamar assim!
Impacienta-se com toda a conversa e ele desesperado tenta mais uma vez amansar a fera que há dentro do coração dela.
-Não feches assim a porta neste coração cansado de te implorar perdão!
-Já cedi-te tempo em demasia, não posso eu ficar aqui a jogar o tempo nesta noite fria. Nada do que tu fizeres irá mudar o meu querer!
-Ficas comigo, querida. E eu te esquentarei cada estilha de teu corpo macio...
-Agora excedestes as palavras. Não me procures nunca mais! Desapareças de minha porta, de minhas vistas, de minha vida! Tiveste teu tempo. Eu te ouvi!Agora chega!
-...
-Por que choras?
-Dê-me apenas o direito de derramar lágrimas minhas por ti, já que a pessoa que mais amo não me deseja sequer em sua porta. Não há mais um sentido doce para minha vida continuar...
-Não chores, sabes que não resisto a ver alguém chorar... por favor...
-Acaso te importas com o meu sofrer?
-Sim... me importo até mesmo com um animal a sofrer... por quê? Acaso achas, pensas que sou fria e débil criatura?
-... não. Mas acredito que se te importas com meu pranto é porque ainda me amas...
-Ora! Eu já te disse que não há possibilidades para teu regresso ao meu peito, que muito foi apunhalado. Sabes bem o que fizeste com meu sentimento, e agora queres que eu o faça renascer?
-Oh, apenas dê-me mais esta vez... Eu te preciso... Oh, meu nenúfar celeste, não me abandones!
-Muitas lágrimas derramei e tu não estiveste comigo quando sofria. Em outros tempos fui-te fiel dama, amável companheira e servil amiga. Soubestes reconhecer isto? Não. óbvio que não! Não posso dar-te além do meu desprezo e minha dor... Por favor, não quero mais continuar este diálogo. Vais e esquece-te de mim para toda a eternidade.
E a noite, aquele dia, estava mais escura que o breu manto da morte. A lua sofria em silêncio por mais um amor desfeito. Ele seguiu andando como que por um labirinto do subsolo infernal, para onde vão as almas arrasadas pelo fogo do amor mal resolvido. Tinha dentro de si a certeza que jamais outro amor como este receberia de uma outra dama. Todas as que dele se aproximariam não fariam um terço do que esta foi capaz de realizar em sua vida. Ela fechou não apenas a porta de sua alcova, mas também, de seu coração. Decidiu que nunca mais sofreria com outra adaga cravada em seu jovem coração. Um dia, tudo conspirou para a união destes jovens namorados que tanto se amavam. Eis que o verme da traição corroeu a aliança e nada mais foi possível a não ser o desatamento de suas almas. O destino, às vezes, pode ser definitivo e único, perverso e drástico. O que foi quebrado jamais se recuperará por inteiro.

(Jaquelyne de Almeida Costa, 25-05-2008)

quinta-feira, 15 de maio de 2008

O Retrato de Dorian Gray

“COSTUMA-SE DIZER QUE a beleza é somente superficial. Pode ser que seja. Mas não tão superficial, pelo menos, como o pensamento. Para mim, a Beleza é a maravilha das maravilhas. Só o medíocre não julga pelas aparências. (...) Ah! Aproveite a sua juventude enquanto a tem. Não esbanje o ouro dos seus dias, dando ouvido aos tediosos, tentando melhorar o fracasso sem esperança ou desperdiçando sua vida com ignorantes, com o fútil, com o vulgar. São estes os objetivos doentios, os falsos ideais da nossa época. Viva! Viva a maravilhosa vida sua! Não perca coisa alguma dela. Busque sempre novas sensações. Que nada o atemorize.” [clique na imagem para ver o quadro]


O RETRATO DE DORIAN Gray (1890), de Oscar Wilde, é um romance sobre a corrupção da beleza. Nele, o jovem e belo Dorian possui a dádiva de jamais envelhecer, ao contrário do retrato dele pintado pelo talentoso Basil Hallward, que depositara nesta sua verdadeira obra-prima demasiado de si mesmo, uma vez que se tornara obcecado pelo seu gracioso modelo. A citação acima é de um dos diálogos do mais atraente personagem da trama, Lord Henry Wotton, cujas filosofias influenciam o até então ingênuo Dorian Gray que, ao perceber que a sua figura gravada na pintura de Basil jamais envelheceria, desejou que acontecesse o oposto: “Se eu ficasse sempre jovem, e esse retrato envelhecesse! Por isso – por isso – eu daria tudo! Sim, não há nada no mundo que eu não desse! Daria até a minha própria alma!” E é o que acontece.

O MAIS INTERESSANTE do livro é a maneira como a personalidade de Dorian vai se modelando com o passar do tempo. Acaba se envolvendo em alguns crimes dos quais jamais é suspeito, conservando intocado o seu invejoso semblante juvenil, mesmo no auge de seus quarenta anos. Enquanto isso, a sua alma aprisionada no quadro vai se tornando cada vez mais velha, enrugada e repugnante.

WILDE É AUTOR DE belíssimos poemas e contos, muitos deles sobre a beleza. Há uma inteligente conclusão sua sobre o mito de Narciso, um rapaz que todos os dias ia contemplar o rosto num lago e acabou morrendo afogado (no lugar onde caiu nasceu uma flor, que passamos a chamar de Narciso):

ELE DIZ QUE QUANDO o jovem morreu, vieram Oréiades (deusas do bosque), e viram que a água doce do lago havia se transformado em lágrimas salgadas.
– Por que você chora? – perguntaram as Oréiades.
– Choro por Narciso.
– Ah, não nos espanta que você chore por Narciso – continuaram elas. – Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corrermos atrás dele pelo bosque, você é o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza.
– Mas Narciso era belo? – quis saber o lago.
– Quem melhor do que você poderia saber? – responderam, surpresas, as Oréiades. – Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
– Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo. Choro por ele porque, todas as vezes em que se deitava sobre minhas margens, eu podia ver, no fundo de seus olhos, a minha própria beleza refletida.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Memórias de Minhas Putas Tristes

FOI COM UMA GRANDE satisfação que comprei numa loja de livros usados uma edição de Memórias de Minhas Putas Tristes (2004). O exemplar estava novíssimo e possivelmente tivera antes de mim apenas um dono. Nenhuma orelha, arranhão na capa ou risco de lápis ou caneta. Há alguns dias antes havia começado a leitura de Cem Anos de Solidão (1967), romance mais famoso deste mesmo autor chamado Gabriel García Marquez, vencedor do Nobel de Literatura de 1982. Interrompi imediatamente a leitura de Cem Anos... para devorar minha mais nova aquisição.


A OBRA É DIVIDIDA EM cinco pequenos capítulos com um total de 130 páginas apresentadas em letras grandes. Comparado ao outro livro citado, este mais parecia um conto. E é bom que assim mesmo seja, porque a história não é algo que merecesse ser estendida. Para ser direto, Memórias de Minhas Putas Tristes é uma narrativa em primeira pessoa da vida de um jornalista de noventa anos que, para comemorar sua maravilhosa idade, resolve presentear-se com uma noite de amor com uma menina virgem. Ele, no entanto, acaba-se apaixonando pela jovenzinha que o recebera dormindo na cama do bordel. Sim, é mais um romance no estilo “ancião e ninfeta”.
A INTENÇÃO DO LIVRO é mostrar que nunca é tarde para ser feliz, focando-se no primeiro amor do velhusco, chegado somente no fim de sua pobre vida deprimente. O ponto alto da obra é justamente esta auto-reflexão que o personagem faz sobre sua jornada que só agora encontra algum sentido:

“A casa renascia de suas cinzas e eu navegava no amor de Degaldina com uma intensidade e uma felicidade que jamais conheci em minha vida anterior. Graças a ela enfrentei pela primeira vez meu ser natural enquanto transcorriam meus noventa anos. Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. (...) Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco.”

A NATURALIDADE COM que o autor expõe o tema chega a incomodar o leitor que não procurava certa obscenidade no romance, como no trecho que tratei de transcrever:

“Olhou-me nos olhos, mediu minha reação ao que acabava de me contar, e disse: Então, vá correndo procurar esta pobre criatura mesmo que seja verdade o que dizem os seus ciúmes, não importa, o que você viveu ninguém rouba. Mas, isso sim, sem romanticismos de avô. Acorde a menina, fode ela até pelas orelhas com essa pica de burro com que o diabo premiou você pela sua covardia e mesquinhez. De verdade, terminou ela com a alma: não vá morrer sem experimentar a maravilha de trepar com amor.”

MINHA IMPRESSÃO FINAL é esta: entre altos e baixos, Márquez consegue ser apenas bom, sem arrancar maiores elogios. Não é um livro que eu reiniciaria a leitura, e possivelmente venderia de volta à loja de onde comprei, devolvendo-o sem nenhum rabisco, que geralmente costumo fazer circulando ou marcando os trechos que mais me fascinam.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Um Espirro


TRANQUEI-ME NO QUARTO escuro em busca de novas perguntas e da mesma coragem inimiga de sempre, à espera de alguém com uma mão estendida e um abraço sincero guardado de presente. Quando se está em busca de auto compreensão é necessário assumir que há algo de errado contigo. Deprimir-se para poder escrever é como drogar-se para fazer arte, ou uma forma de mentir para si mesmo. Toda forma de arte deveria ser gratuita. Do contrário, mais parece uma prostituição. Logo, a maioria dos artistas são infames meretrizes. Quando relemos antes de concluir um trabalho é porque há insegurança nas palavras, e quando escrevemos prá nós mesmos produzimos o que melhor conseguimos compor. No entanto, há inúmeros exemplos de obras primas escritas para qualquer outro alguém − na maioria das vezes, uma musa capaz de provocar o amor. Na verdade nunca amei corretamente nem ouvi nenhuma declaração amorosa. Meus verdadeiros amigos eu consigo contar nos dedos de talvez uma única mão apenas. E que seja a mão esquerda, que é mais próxima ao coração, que é órgão figurado do sentimento. Enfim, não sei o propósito destas linhas confusas e miscigenadas. Talvez um desabafo idiota. Este texto é apenas um espirro. É um desejo de liberdade. É um comichão inconsciente. É uma carta de amor inusitada. Ah, se você pudesse entrar em minha mente. Então encontraria apenas espelhos com seu reflexo gravado neles.

quinta-feira, 13 de março de 2008

O Apanhador No Campo de Centeio

O APANHADOR NO CAMPO de Centeio (The Catcher in the Rye, 1951) é uma daquelas obras que não podem faltar em nossa estante. Histórico e polêmico, pode-se dizer que o livro inventou a adolescência, uma vez que até a década de 50 os jovens eram encarados de uma forma completamente errônea: ou eram somente crianças ou já eram considerados adultos. Ao escrever o romance, J. D. Salinger deu uma identidade a essas complexas criaturas e acabou influenciando toda uma geração que modificou o mundo na década posterior. Os hippies pré-setentistas que o digam.

CONFESSO QUE FUI COM muita sede ao pote quando iniciei a leitura. A maneira simples e direta com que Salinger narra a saída do jovem menor de idade Holden Caufield de seu terceiro colégio, aquele “cheio de cretinos e sujeitos perversos” me deixou um tanto decepcionado. Talvez eu esperasse uma maior rebeldia por parte do personagem pelo fato de ter se tornado uma referência para os jovens da era pré-rock and roll, mas o fato é que ele era devidamente rebelde para a época. Até aquele momento, nenhum outro autor havia analisado tão profundamente a alma destas crianças-quase-adultas. Utilizando-se de inúmeras gírias, traça um roteiro aparentemente sem rumo, entrando em temas completamente distintos à medida que se iniciava outro pensamento. Uma espécie de Joyce ou Kafka para adolescentes.
É NECESSÁRIO ESTAR mesmo muito deprimido para escrever um livro como estes, e talvez o seu autor fosse sempre assim. Seu best seller vendeu milhões de exemplares em apenas dois anos, transformando Salinger numa espécie de astro. Conta-se que Bob Dylan fugiu de casa várias vezes inspirado nele. De qualquer forma, é sabido que Salinger renunciou às glórias literárias e decidiu-se por viver isolado numa casa no topo de uma montanha. As vendas de seus livros tiveram um grandioso salto com a trágica morte de John Lennon, assassinado por um fã descontrolado. Mark David Chapman, dono da arma calibre 38 que tirou a vida do ex-beatle, carregava consigo uma edição do Apanhador No Campo de Centeio e dizia obedecer a vozes em sua cabeça.
O LEITOR SE DEPARA com a estória de um irritante jovem virgem e depressivo, insatisfeito com praticamente tudo ao seu redor. Contudo, à medida que avançamos na leitura, começamos a encontrar algumas passagens que nos deixarão mais tarde, ao chegar às últimas páginas, com um generoso sentimento de satisfação. O ponto alto da obra de Salinger está no mau-humor de Holden, que odeia cinema e é incapaz de ligar para a garota por quem é perceptivelmente apaixonado. Seu estado depressivo o leva a pensar em suicídio e a desejar se passar por surdo-mudo, para que não precisasse ter “nenhuma conversa imbecil e inútil com ninguém”. No decorrer da narração, é chamado de bobalhão por uma prostituta, de estranho pelo professor que ele julga ser “veado” e de imaturo por um amigo intelectual seu, o que o faz cair cada vez mais na mais assustadora depressão. É um fumante compulsivo em alguns trechos e costuma mentir sobre sua idade para conseguir beber nos restaurantes que freqüenta, mas não chega a ser um rebelde ao pé da letra. Phoebe, a irmãzinha de Holden, acaba roubando a cena no rumo final do romance, roubando o verdadeiro cargo de heroína, uma vez que o protagonista está mais para um enlouquecido vilão.
A LEITURA DO LIVRO não é recomendada para jovens imaturos, pois tem a capacidade de transportar o leitor para o mesmo estado de espírito de Caufield. Contudo, é um estudo obrigatório. É preciso cair na fossa para observar com cautela as imundícies presentes em cada momento de nossa vida cretina, idiota e sem sentido.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

On the Road

SEI PERFEITAMENTE O QUE é interromper um fluxo de criatividade redacional. Às vezes, o simples fato de virar a folha desconstrói o pensamento, deixando-o, muitas vezes, distinto das palavras anteriores. Já me aconteceu muitas vezes. Numa destas ocasiões rabisquei no fim do papel: "e seria apenas o início, não fosse a falta de espaço" (o outro lado, completamente em branco, não adiantava de nada). Por estes e outros motivos, entendo porque Jack Kerouac utilizou um rolo de papel de telex em sua máquina de escrever para autobiografar suas aventuras sem rumo pelas estradas norte-americanas no fim da década de 40. Numa alusão, aquele papel interminável significaria a própria estrada ou sua própria aventura. O fato é que On The Road se tornou um clássico e influenciou toda uma geração, tornando-se a bíblia daqueles que se consideravam beats na década de 60; e ajudou a forjar o que viria a ser os movimentos hippie e punk dos anos posteriores.

O ROCK AINDA NÃO EXISTIA no ano em que a estória foi vivida ou escrita (1951), mas seus personagens principais, Sal Paradise e Dean Moriarity, divertiam-se em bares ao som de jazz ou do popular bebop da época, enlouquecedor e bastante dançante, como viria a ser o rock'n'roll dos anos em que o livro foi finalmente publicado (1957). Sabe-se que o jovem Bob Dylan fugiu de casa inspirado neste romance, e da mesma forma teria feito Jim Morrison, que decidira montar sua banda após a leitura. É impressionante como o tema sobrevive até hoje. Certa vez encontrei, por acaso, um grupo chamado Dean Moriarity nas buscas sem sentido na internet.
A CARACTERÍSTICA PRINCIPAL do livro é a ausência de uma história a ser evoluída: não há um tema para a narração se apegar. Isso talvez deixe a leitura um tanto sem sentido, mais digerível apenas por aqueles que têm, pelo menos oculto dentro de si, um espírito aventureiro semelhante (ou às margens) ao de Sal/Kerouac. Colocarei a seguir um trecho que ajuda a resumir o espírito beat vivido nas páginas de On the Road:

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"E por um instante alcancei o estágio do êxtase que sempre quis atingir, que é a passagem completa através do tempo cronológico num mergulhar em direção às sombras interporais, e iluminação na completa desolação do reino mortal e a sensação de morte mordiscando meus calcanhares e me impelindo para a frente como um fantasma perseguindo seus próprios calcanhares, e eu mesmo correndo em busca de uma tábua de salvação de onde todos os anjos alçaram vôo em direção ao vácuo sagrado do vazio primordial, o fulgor potente e inconcebível reluzindo na radiante Essência da Mente, incontáveis terras-lótus desabrochando na rápida trepidez do céu. (...) Senti uma sensação suave, serpenteante como um tremendo pico de heroína numa veia principal; como aquele gole de vinho que traz um arrepio de satisfação num fim de tarde; meus pés se arrepiaram. Pensei que ia morrer naquele exato instante. Mas não morri e caminhei uns sete quilômetros, catei dez longas baganas e as levei para o quarto de Marylou no hotel e derramei os restos de tabaco no meu velho cachimbo e o acendi. Eu era jovem demais para perceber o que havia se passado".

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HISTÓRIAS À PARTE, Kerouac consegue manter o leitor realmente ansioso nas páginas finais, curioso para descobrir o que aqueles malucos encontrariam no México; e com uma verdadeira tristeza nas últimas linhas, sentida apenas naqueles que acompanharam até o final as aventuras daquela dupla inconseqüente e imortal. Jamais alguém escreverá algo parecido. Dica: se você ainda não leu, deve fazê-lo antes de morrer.